Olá Povão, esta semana foi uma semana muito interessante para a ciência. Parece que Hidroxicloroquina e Cloroquina são os medicamentos mais polêmicos de todos os tempos.
Alguns posts atrás falamos do estudo publicado na revista Lancet que avaliou a eficácia e a segurança da cloroquina/hidroxicloroquina no tratamento de 96 mil pacientes em 671 hospitais. Estes medicamentos estão sendo promovidos pelo governo como uma cura milagrosa, uma bala mágica contra a COVID-19. O estudo chegou na mídia e parecia tão definitivo que a Organização Mundial de Saúde (OMS) parou todos os estudos clínicos com cloroquina, inclusive no Brasil. A questão sobre a cloroquina parecida encerrada.
A situação começou a mudar dias após a publicação do estudo, quando cientistas questionaram os dados publicados e compararam com fontes oficiais. Por exemplo, os autores do artigo contaram 73 mortes na Austrália até o dia 21 de Abril. Porém, segundo o banco de dados da Universidade John Hopkins, o número de mortes na Austrália só chegou em 73 no dia 23 de Abril. Em respostas à esse questionamento os autores do artigo publicaram uma carta dizendo que a diferença nos números foi porque um hospital da China foi considerado por engano na contagem.
A situação ficou mais complicada quando jornais e cientistas começaram a investigar a empresa responsável por administrar os dados da pesquisa, a empresa de tecnologia médica Surgisphere Apesar da Surgisphere promover um grande banco de dados com 1.000 de hospitais, sua presença na Internet é consideravelmente pequena; com apenas 100 seguidores no Twitter e nenhum post até Março de 2020. Os hospitais australianos que poderiam ter fornecido os dados à Surgisphere disseram em comunicado que nunca entraram em contato com a empresa. Como então esses dados foram obtidos? Isso levanta suspeitas de fraude em conselhos de ética, uma vez que informações sobre pacientes não podem ser usadas sem autorização.
Mas as coisas ficam ainda mais estranhas. O jornal britânico The Guardian publicou uma matéria especial sobre a Surgisphere listando diversos pontos suspeitos na história e organização da empresa. O executivo chefe, Sapan Desai (que também é um coautor no artigo da Lancet), já foi processado por prática médica duvidosa e em 2008 anunciou um projeto de crowdfunding para desenvolver um tecnologia que “aceleraria a evolução humana” (Lembram daquelas pulseiras do equilíbrio?). Além disto, menos de 10 pessoas estão listadas como funcionárias e cargos importantes são ocupados por pessoas sem formação científica ou médica, incluindo escritores de ficção científica como editores científicos e uma modelo erótica como executiva de marketing.
A Surgisphere também parece ter surgido do nada. Fundada em 2008 com foco em livros texto e educação médica, recentemente a empresa anunciou um banco de dados gigantesco e conseguiu publicações em revistas científicas relevantes, como Lancet e o The New England Journal of Medicine. De acordo com especialistas, para construir um banco de dados tão grande seriam necessários anos de trabalho com programação, tradução e acordos com diferentes grupos de pesquisa e hospitais. Mas nada na história da Surgisphere sugere que isso foi feito ao longo dos anos. Segundo Desai, a empresa vem desenvolvendo o banco de dados desde sua fundação. A origem dos dados e a metodologia usada na coleta ainda não foram explicadas. De fato, os dados brutos não foram disponibilizados para revisão. Como eles conseguiram tantos dados ainda é um mistério.
Após reanálises independentes pelos demais autores, o artigo sobre cloroquina foi retratado (retirado do ar). Além disto, outros dois artigos que usaram dados da Surgisphere também foram retirados do The New England Journal of Medicine, reforçando que a ciência por trás destes estudos tinha falhas graves. Coisas para levar para vida: quando um artigo científico é retirado de circulação por suspeitas de fraude a carreira dos cientistas envolvidos pode acabar num piscar de olhos. Isso é extremamente grave, principalmente porque os cientistas que não fazem parte da Surgisphere confiaram cegamente nos dados da empresa.
Ainda não sabemos qual impacto isso irá causar. A OMS já voltou atrás e os estudos clínicos com cloroquina foram retomados. Considerando o crescimento no negaciosismo científico, é possível que alguns grupos capitalizem sobre essas suspeitas e ganhem mais seguidores; como grupos antivacina. Além disto, o processo de revisão de artigos científicos poderá sofrer mudanças nos próximos anos, uma vez as revistas científicas afetadas são de grande relevância. Vamos aguardar os próximos capítulos dessa novela.
Autor
Marcos V. Santanna
Farmacêutico e Doutor em Biotecnologia
Referências:
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