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Foto do escritorMarcos V. Santana

A Revolta da Vacina

E ai, Povão! Preparados para esse final de ano? As últimas semanas foram bastante agitadas na ciência! Várias vacinas contra COVID-19 se mostraram bastante eficazes e, na última semana, o Reino Unido iniciou a campanha de vacinação massiva com a vacina produzida pela parceria Pfizer-BioNTech. Será que finalmente vamos ficar livres desse vírus que foi um atraso de vida em 2020? Vamos torcer que sim!


Hoje vamos falar de uma história bastante conhecida na cultura popular brasileira. No começo do século 20, quando nem mesmo antibióticos estavam disponíveis para o tratamento de infecções bacterianas, houve uma revolta relativamente violenta no Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Essa situação ficou conhecida como Revolta da Vacina e até hoje instiga curiosidade, tanto da população em geral, quanto de pesquisadores que estudam os motivos e como evitar que uma nova revolta aconteça. Então vamos lá falar um pouco sobre a Revolta da Vacina!


Rio de Janeiro no começo do século XX


No início do século XX, o Rio de Janeiro era a capital do país e sua principal cidade. O porto era bastante agitado, com milhares de mercadorias e pessoas chegando ou saindo diariamente. Essa movimentação estimulou bastante a urbanização, e a cidade cresceu consideravelmente nessa época. Porém, a cidade tão homenageada em músicas, filmes e novelas, nem sempre foi um paraíso na Terra. Na verdade, a cidade do Rio era tão suja que mais parecia um chiqueiro. Tomado de ruas estreitas, casas caindo aos pedaços, sujeira no chão e sem o mínimo de saneamento básico. Olha essa imagem do Angelo Agostini comparando o Rio com Buenos Aires e Montevidéo:


Tá vendo só? O Rio é representado como a moça caída no meio dos porcos, com a morte olhando da sacada da janela e um porco sentado na prefeitura. Essa imagem pode ser bastante forte, mas o cheiro no centro do Rio era pior! Quem já passou perto do esgoto a céu aberto conhece bem esse cheiro. Agora imagina isso por toda cidade! Mas além do cheiro e da sujeira nas ruas, o Rio vivia numa situação muito pior: epidemias de febre amarela.


A febre amarela é uma doença transmitida pela picada de mosquitos da espécie Aedes aegypti, um conhecido de longa data do brasileiro. Povão, a febre amarela não é só uma gripezinha! Depois de um período de incubação de uns 7 dias, a maioria das pessoas não relatam sintomas. Quando os sintomas aparecem eles incluem febre, dor nas costas e na cabeça, perda de apetite, náusea e vômito. Bem parecido com uma gripe pesada, certo? Quem dera! Uma parcela dos infectados evoluem para uma segunda fase bem mais perigosa, assim que os sintomas mais brandos passam. Essa fase mais complicada é marcada por uma febre bem mais alta e vários órgãos são afetados, principalmente o fígado e os rins. Não há histórico de atleta que aguente! Devido ao comprometimento do fígado, os infectados desenvolvem uma cor amarelada da pele e nos olhos, a qual dá nome à doença, além de urina escura, muita dor abdominal e vômito. Além disso, pode ocorrer hemorragia na boca, nos olhos e interna também. Quando os pacientes entram nessa fase, geralmente morrem em 7 - 10 dias. Agora imaginem uma cidade tomada por mosquitos, sem formas de controle eficiente e com uma grande parcela da população vivendo sem saneamento básico e amontoadas em casas insalubres.


Mas e o governo? Não fazia nada? Claro que fazia. Na época, o presidente do Brasil era Francisco de Paula Rodrigues Alves (1902 - 1906) e o governo criou um plano de saúde comunitária muito eficaz, capaz de erradicar as piores doenças e promover melhores condições de vida para a população da cidade. A ideia era simples: expulsar os pobres e favorecer os ricos..


A solução para a saúde no Rio: Bota abaixo!


Na virada do século XIX para o XX, o Rio de Janeiro passou por algumas mudanças, propostas pelo então prefeito Francisco Pereira Passos (1902 - 1906) com o intuito de modernizar a cidade e transformá-la num verdadeiro cartão postal digno de ser a capital do país. Sabemos bem como alguns dos nossos governantes colocam cidades europeias num pedestal; não foi diferente com o Rio. Como fazer isso? Bem, o prefeito tinha algumas ideias: ordenar, higienizar e demolir (com ênfase nesta última). Basicamente, o prefeito começou uma campanha de demolição de cortiços e casarões antigos, principalmente no centro da cidade. Com a bandeira de livrar a cidade da febre amarela e de outras doenças, a prefeitura começou um plano de livrar a cidade da população mais pobre junto.


No “Bota abaixo” do Pereira Passos, o centro do Rio passou por uma grande transformação. Os cortiços, tão comuns na cidade, foram demolidos, e boa parte da população foi removida de suas casas e realocadas para qualquer lugar. Várias ruas e avenidas foram alargadas, incluindo algumas bastante famosas na cidade, como a futura Avenida Passos (antiga rua do Sacramento), a rua Uruguaiana e a Avenida Central (hoje chamada de Av. Rio Branco).


Vale salientar que as medidas de Pereira Passos, por mais que tenham um caráter benéfico para cidade, modernizando e reduzindo os riscos sanitários, também foram bastante autoritárias. As pessoas, principalmente as mais pobres que moravam em cortiços, não tinham muita opção para onde ir; era sair ou sair de casa. Essa situação foi um motivo bastante compreensível para criar um pensamento de revolta na população.


A Revolta da Vacina (1904)


Durante a presidência de Francisco de Paula Rodrigues Alves (1902 - 1906) foi desenvolvida a vacina para varíola, uma infecção viral bastante mortal e muito conhecida na época. Povão, a varíola não era brincadeira! Além de poder ser fatal, as pessoas que passavam pela doença ficavam marcadas para vida.


Atualmente a varíola é considerada erradicada, ou seja, não existem casos relatados de pessoas infectadas naturalmente por varíola. O último caso confirmado foi em 1977. Mas a situação era outra no início do século 20.


Em 31 de Outubro de 1904, o congresso nacional votou de forma bastante tumultuada a vacinação obrigatória da população contra a varíola. Essa questão foi muito turbulenta, com várias pessoas vendo com maus olhos essa suposta invasão de privacidade e a quebra da liberdade de escolha. Além disso, a população da época não tinha acesso à informação que temos atualmente, ou seja, não foi feita uma campanha massiva para explicar para a população como a vacina funciona e quais os benefícios e os riscos. De fato, essa campanha de vacinação foi bastante autoritária, com o governo literalmente forçando uma lei sem direito de resposta. Um dos principais responsáveis pela obrigatoriedade da vacina e pelo plano do governo foi o sanitarista Oswaldo Cruz, o mesmo que dá nome à renomada Fundação Oswaldo Cruz. Nos planos do governo, também estava incluída a febre amarela. Olha aí uma charge da época:


Com a falta de informação e o histórico de medidas autoritárias do governo, a população não gostou nada de saber que ia ter o braço furado para colocar um líquido que ninguém sabia o que tinha dentro! Devido ao medo geral da população e esse clima de insegurança, o governo fez a única coisa que uma democracia sadia e sensata poderia fazer: resolveu invadir as casas e dar a vacina à força. Nada poderia dar errado, não é mesmo?


O que aconteceu depois foi um endurecimento da campanha de vacinação. Quem não tomasse a vacina não poderia nem se casar! Além disso, os agentes do governo tinham autorização para invadir e ocupar as casas para vacinar as famílias à força. A vacinação de mulheres e crianças também era vista com maus olhos pela população conservadora da época. Se nem trajes curtos eram permitidos, imagina só deixar os braços à mostra, completamente nus, para um desconhecido que invadiu sua casa! Que pecado! Essa situação era vista como uma ofensa à honra (principalmente masculina).


A resposta da população não poderia ser outra. “Não à vacina!” e “Morte à Polícia” eram frases comuns nas ruas da cidade nessa época. No dia 10 de Novembro de 1904 toda revolta estourou de forma violenta. Eram bondes e carros destruídos, lojas incendiadas e muita pancadaria na cidade. Uma destruição sem precedentes para a época. E a revolta não parou por aí não! O quebra-quebra na cidade se estendeu por mais 6 dias. O saldo da revolta foi de mais de 900 prisões, 30 mortos, uma centena de feridos e mais de 461 deportações para o Acre (até então uma região bem remota do país).


A lição para nosso tempo


A Revolta da Vacina nos ensina muitas coisas atemporais. Talvez uma das mais importantes seja acesso à informação e políticas públicas. Em 1904, ambas as coisas faltavam e a solução do governo foi usar a força. Hoje, em 2020, podemos dizer que a falta de informação não é o maior problema; a questão da nossa sociedade é o acesso à informação de qualidade. A Internet permite que nós tenhamos uma resposta para virtualmente qualquer pergunta em alguns segundos. É muito fácil colocar um termo no Google e conseguir argumentos para responder um post nas redes sociais. Mais complicado é entender o conteúdo e saber analisar de forma crítica. Perguntas como “será que isso é verdade mesmo?” estão caindo em desuso e nossa época tem sido marcada pelo crescimento das famosas fake news. Se em 1904, sem computadores, redes sociais etc, parte do problema da Revolta da Vacina foram “fake news”, imagina o estrago que essa situação pode causar hoje.


Outro ponto são as políticas públicas. A forma como o governo brasileiro, e na verdade vários governos na história, lidaram com as demandas e problemas da população, está longe do ideal. Podemos resumir as causas da Revolta da Vacina numa frase do presidente Washington Luís (1926 - 1930): “A questão social é um caso de polícia”. Em vez de entender as demandas e buscar soluções pacíficas para o benefício do povo, muitos governantes escolhem medidas no mínimo controversas, como forçar o povo a ter o braço furado com algo desconhecido.


O recado do Ciência Povão é que 1904 não se repita. A vacina contra COVID-19 já está disponível e daqui alguns meses estará no Brasil. A vacinação é uma das invenções mais bem feitas da humanidade. Graças ao trabalho de muitos cientistas nós fomos capazes de erradicar doenças que assolavam o planeta por milhares de anos, como a varíola e a poliomielite. Nós vamos continuar postando informações sobre as vacinas, tentando mostrar a importância da vacinação para qualidade de vida. Então, Povão, mantenham-se hidratados, protegidos e se preparem para a vacina!


Referências:


  1. Nerdologia sobre a Revolta da Vacina: https://www.youtube.com/watch?v=SlsHN-OWCkw&t=444s

  2. Uma análise sobre a Revolta, com várias charges da época e uma análise mais profunda do clima na cidade: https://medium.com/@joorodriguez/cura-na-mem%C3%B3ria-ii-o-movimento-anti-vacina-exp%C3%B5e-a-republiqueta-61a7e9375a7e

  3. Sobre o Bota abaixo: https://atlas.fgv.br/verbetes/o-bota-abaixo e http://multirio.rio.rj.gov.br/index.php/estude/historia-do-brasil/rio-de-janeiro/66-o-rio-de-janeiro-como-distrito-federal-vitrine-cartao-postal-e-palco-da-politica-nacional/2911-administracao-pereira-passos-o-bota-abaixo

  4. Sobre a Revolta: https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia-brasil/revolta-da-vacina-oswaldo-cruz-e-pereira-passos-tentam-sanear-rio.htm?cmpid=copiaecola

  5. Mais um ótimo artigo sobre a Revolta: http://multirio.rio.rj.gov.br/index.php/estude/historia-do-brasil/rio-de-janeiro/66-o-rio-de-janeiro-como-distrito-federal-vitrine-cartao-postal-e-palco-da-politica-nacional/2917-a-revolta-da-vacina



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