E ai, Povão. Estão se mantendo hidratados e sem aglomeração? Hoje vamos continuar a série sobre grandes cientistas brasileiros e a personalidade que vamos falar hoje é bem conhecida nas universidades. Essa pessoa é tão importante que ela sabe tudo sobre a carreira de todos os cientistas do Brasil, sejam eles de Exatas ou Humanas; ele sabe até mesmo o que você publicou no verão passado. Sem mais delongas, nosso grande cientista brasileiro de hoje é ele, César Lattes!
Quem foi César Lattes?
Talvez muitas pessoas, até mesmo quem está na carreira científica, não saibam que a Plataforma Lattes, o sistema de currículos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), não recebeu esse nome por acaso. O nome da plataforma é uma homenagem a Cesare Mansueto Giulio Lattes, mais conhecido como César Lattes, um dos físicos brasileiros de maior renome internacional e que teve papel fundamental no desenvolvimento da física de partículas subatômicas.
Figura 1: César Lattes lecionando.
César Lattes nasceu no dia 11 de julho de 1924 em Curitiba, Paraná. Filho de imigrantes italianos, ainda jovem se mudou para São Paulo com a família, onde cursou o secundário no Instituto Dante Alighieri de 1934 a 1938. Com apenas 16 anos ingressou na Universidade de São Paulo (USP), onde se graduou em 1943 em Física e Matemática. No mesmo ano começou a trabalhar sob supervisão do físico ucra-italiano Gleb Wataghin no Departamento de Física da USP. Pessoal, o grupo de pesquisa que o Lattes entrou não era brincadeira não; alguns dos maiores nomes da física brasileira da época estavam nele, incluindo José Leite Lopes, Oscar Sala, Mário Schenberg, Marcelo Damy de Souza Santos e Jayme Tiomno. Todos esses são referência na física brasileira e conquistaram fama internacional. Tá vendo como o Brasil é qualidade?
A descoberta de Lattes
A carreira científica de César Lattes foi meteórica. Apenas 4 anos depois da graduação, Lattes foi um dos responsáveis pela descoberta do méson π (pi), abrindo caminho para uma nova era da física teórica. Mas o que é esse tal méson pi e por que sua descoberta foi tão importante? Na década de 1940, os físicos se perguntavam como os prótons (uma das partículas que compõem o núcleo dos átomos) se mantinham unidos. De forma breve, o núcleo atômico é formado por prótons, com carga elétrica positiva, e nêutrons com carga zero. Como os prótons apresentam a mesma carga, intuitivamente pensaríamos que eles iriam se repelir e iria voar pedaço de núcleo para todo lado, como o que acontece quando aproximamos dois pólos iguais de um ímã. Mas isso não acontece, sugerindo que existe alguma coisa mantendo os prótons e os nêutrons unidos.
Em 1935, o físico Hideki Yukawa propôs a existência de partículas subatômicas chamadas mésons, as quais seriam responsáveis por carregar essa força nuclear que mantinha o núcleo unido. Alguns anos depois, os físicos Carl D. Anderson and Seth H. Neddermeyer descobriram evidências em raios cósmicos (prótons e núcleos atômicos de alta energia que vagam pelo espaço quase à velocidade da luz) do que poderiam ser mésons. Teoricamente os mésons seriam muito instáveis, a ponto de existirem por apenas frações de milésimo de segundos quando isolados. Além disso, os mésons deveriam interagir fortemente com os prótons e elétrons do átomo, sendo absorvidos rapidamente. Em 1947, foi demonstrado que o suposto méson encontrado por Carl Anderson and Seth Neddermeyer na verdade era outro tipo de partícula, uma vez que ela basicamente conseguia percorrer grandes distâncias e passar por várias camadas de núcleos sem interagir com nada. E é aqui que entra nosso César Lattes.
Em 1946, Lattes foi convidado para integrar a equipe de Cecil Powell na Universidade de Bristol, na Inglaterra. Nessa época, Lattes estudava o caminho percorrido por prótons em chapas fotográficas especiais, o que permitia calcular sua massa e energia. Estudando chapas colocadas na montanha Pic du Midi (França) com o intuito raios cósmicos, Lattes e Beppo Occhialini perceberam que existiam marcas que indicavam que uma partícula estava diminuindo sua velocidade até parar no final da chapa. Essas marcas diferentes foram a primeira demonstração experimental da partícula que seria chamada de méson π. Mas ainda não existia uma explicação do por que a tal partícula passa pela placa diminuindo sua velocidade até parar. O méson não deveria ser absorvido rapidamente?
Investigando mais a fundo, Lattes resolveu coletar amostras maiores de raios cósmicos indo para um ponto mais alto. Lembram que os raios cósmicos vem do espaço? Então, a ideia do experimento era ir para um lugar bem alto para interceptar as partículas vindo diretamente, antes que elas se perdessem pela passagem na Terra. Quando as partículas passassem pela chapa fotográfica especial, elas deixariam uma trilha indicando sua presença.
César Lattes também introduziu o elemento Boro nas chapas para aumentar a sensibilidade do método. Em seguida, Lattes viajou para a Bolívia e colocou várias chapas de captura de raios cósmicos no topo do monte Chacaltaya, que fica “apenas” a 5.500 metros acima do nível do mar. Estudando as novas placas, Lattes percebeu marcas de dois tipos de partículas; uma delas era idêntica ao méson identificado por Carl Anderson and Seth Neddermeyer, e outra indicava a presença de uma partícula mais leve que a primeira. A partícula mais pesada foi batizada de méson mu (ou múon) e a segunda, mais leve, foi chamada de méson pi. Hoje sabe-se que o múon na verdade não é um méson, mas o nome ficou por tradição mesmo. Análises subsequentes mostraram que, de fato, o méson pi se encaixava perfeitamente na teoria, apresentando as propriedades previstas e que ele carregava a força nuclear forte que mantém o núcleo unido, confirmando a teoria. As descobertas de Lattes foram publicadas em outubro de 1947 na revista científica Nature, no artigo Processes Involving Charged Mesons.
Figura 4: Artigo científico demonstrando a existência do méson pi publicado por Lattes e colaboradores (1947).
A controvérsia do Nobel
As descobertas de Lattes foram tão importantes que diversos grupos de pesquisa começaram a estudar raios cósmicos e descobriram várias outras partículas subatômicas, inaugurando uma nova área na física de partículas. Devido a essa importância, vocês devem estar pensando: “Com toda certeza ele ganhou o Nobel com isso! Olha o que o cara fez”. Ledo engano, pequenos gafanhotos! Alguém ganhou o Nobel pela descoberta do méson pi, mas não foi Lattes. Na verdade quem foi agraciado SOZINHO pelo prêmio foi o chefe do grupo de pesquisa, Cecil Powell, pelo desenvolvimento de método fotográfico para estudo de processos nucleares e sua descoberta a respeito dos mésons com este método, em 1950. Lattes ficou sem o Nobel por uma questão burocrática. Até 1960, o comitê do Nobel só nomeava os chefes de equipe para o prêmio.
O legado
Mesmo sem receber o prêmio mais importante da Ciência, Lattes ainda assim foi extremamente influente na física, especialmente no Brasil. Voltando para o país em 1949, edificou sua carreira científica no país e lecionou na Universidade do Rio de Janeiro (UFRJ). Além disso, Lattes foi um dos responsáveis pela fundação do CNPq (1951), do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA). Lattes foi membro da Academia Brasileira de Ciências e da União Internacional de Física Pura e Aplicada. Trabalhou também para a modernização dos currículos de física. Em sua homenagem a plataforma de currículos acadêmicos do CNPq recebeu seu nome, a famosa Plataforma Lattes.
Figura 5: Divulgação/Antoninho Perri-Unicamp
César Lattes faleceu no dia 8 de Março de 2005 em São Paulo, mas seu legado e sua história não serão esquecidos. Um dos maiores físicos brasileiros de sua geração, a balbúrdia causada por Lattes abriu o caminho para diversos outros cientistas e ajudou a fundar diversas sociedades e instituições científicas do país. Viu como o Brasil é qualidade pura?
Referências
1) Biografia de César Lattes: https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2020/07/cesar-lattes-conheca-trajetoria-do-brasileiro-injusticado-pelo-nobel.html
2) Breve história sobre Lattes (em inglês) com mais detalhes sobre pesquisa: http://www.ghtc.usp.br/meson-e.htm
3) O artigo original (formato PDF) sobre o méson pi (No Sci-hub porque o Ciência Povão apoia pesquisa acessível): https://sci-hub.se/10.1038/159694a0
4) A carreira de César Lattes após o Nobel: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-11172005000300025
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